terça-feira, 29 de julho de 2008

REENCONTROS

Meus caros camaradas Há dias recebi um email que deixou deveras satisfeito. Não resisto a partilha-lo convosco.
Reproduzo-o aqui:
'Meu furriel',como e que estas? 35 anos se passaram desde o nosso'convivio' no Xitole. Guardo boas memorias desse tempo. Vim para a Australia com a familia em 1985,long time ago.E um bonito pais, com muitas oportunidades. Reformei-me este ano.E uma boa altura porque vou ser avo very soon. Tenho ido a Portugal a few times, e penso ir la no proximo ano. Uma das coisas que eu gostaria de participar,era nessas reunioes com o pessoal da nossa companhia, mas para isso preciso de ser avisado com tempo e horas. Alvaro espero que tudo va correndo bem com a tua vida incluindo a familia. E ja agora aproveito para te desejar um FELIZ DIA DE ANOS.'infelizmente vamos ficando mais velhotes. Um grande abraco Arthur Pereirap.s. numa das photos estou eu no meio,o Victor, o Bicho e o nosso amigo cantineiro, o Moreira
Lembram-se dele? O "nosso" Artur "pastilhas"
Aqui vão as fotos que ele mandou.
Era excelente que ele pudesse vir cá em 5 de Outubro próximo mas a Austrália é de facto muito longe. A ver vamos.
Alvaro Basto

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O regresso e os primeiros tempos...

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Sei lá quando, já não me lembro, mas deve ter sido nos meados de Dezembro de 1973, que me disseram em Mansoa:
«Prepara-te, vais para Bissau para embarcares para a Metrópole.»
Parecia assim uma coisa irreal!
Agora que o cacimbo tomava conta de mim totalmente, agora que tanto me fazia ser de noite ou de dia, estar no quartel ou no mato, é que me diziam para eu me ir embora.
Fiquei a pensar no assunto e tive uma certeza:
Tinha de estar muito apanhado do clima para a coisa não se transformar em euforia!
Lá pelos vinte dias de Dezembro, julgo eu, vim então com uma mala pequena, para Bissau.
Tanto tempo, dois anos e nada para trazer!
O whisky tinha-o bebido, (que assim não se estragava de certeza), as fotografias, as que tinham sobrado de uma fúria que me tinha dado e me levou a rasgar não sei quantas, também vinham no saco, o camuflado, uma roupita civil e sei lá eu bem mais o quê.
Bissau, as burocracias, os últimos copos, as últimas doideiras, (tenham pena de mim que me vou embora e desculpem lá qualquer coisinha), e duas ou três tentativas falhadas de ligar para a família a dizer:
«Parto hoje chego amanhã, não se incomodem que eu também não»
Um último olhar a Bissau, à terra quente e vermelha, um último suspiro de calor, uma última experiência dos braços, pescoço e todo o corpo sentir-se todo molhado de suor, pegajoso e embarcar.
Ao menos aqui não há aquelas mosquinhas pequeninas do mato que se metem nos olhos, nos ouvidos, poisam nos braços e não levantam quando passamos a mão e ali ficam esmagadas, coladas com o suor do calor e do medo.
Avião, ar condicionado, “hospedeiras” fardadas, de barba feita, que debaixo das cuecas eram “inguais” a mim, que naquele tempo ainda a mulher não ia à tropa!
Lá em baixo vai ficando para trás a estrada de Bambadinca/Xitole, tantas vezes palmilhada, o Geba, e a travessia mil vezes repetida de sintex a remos de Mato Cão para Bambadinca, a estrada Jugudul/Portogole, causa de tantas noites em branco, vai ficando para trás o suor, as lágrimas, a revolta, o sangue e vai nascendo já, muito timidamente, uma saudade inexplicável.
E ficam também para trás os camaradas e amigos que comigo embarcaram e agora ainda têm de penar mais um pouco.
E ficam para trás os meus camaradas “toupeiras” de Mato Cão, e o bife de javali frito em banha da cobra, e as perninhas de rato cozinhadas à José Orabé.
E ficam para trás os Balantas garbosos, guerreiros do «Taque Tchife», «Agarra à mão”, dos quais me vai no coração o “gigante” In Oina Nor, que supostamente me protegia as costas e lá de baixo, na bolanha, deve olhar para o avião com os óculos de lentes amarelas, de andar no mato, que lhe deixei.
Na ida deram-me seis dias de Niassa para me ir habituando à ideia da Guiné.
Agora só me dão duas ou três horas para me ir readaptando à sociedade dita civilizada.
A coisa não vai dar certa!
Finalmente o “pássaro” aterra em Lisboa.
Que tristeza, toda a gente dá abraços, beijos, palmadas nas costas, lágrimas, e eu para ali sozinho, perdido, irrealmente regressado da guerra.
Um camarada da guerra, que não me lembro se já conhecia, ou se foi conhecimento a bordo, percebe a minha desorientação, ou por já lhe ter dito que não tinha lá ninguém à espera, ou porque percebeu a coisa, e diz-me:
É pá, se não tens ninguém, eu peço aos meus pais e levamos-te a casa.
Eu nessa altura, ou seja antes de partir, vivia em Lisboa.
Nunca percebi porquê, mas a verdade é que tinha levado comigo a chave da casa para a Guiné e ainda estava comigo.
Aceitei de muito bom grado a oferta e fizemo-nos ao caminho.
Lembro-me vagamente de termos parado na Estalagem Terminal, logo ali na Avenida Gago Coutinho, pois era lá que os pais deste camarada tinham ficado hospedados e de eu tentar telefonar para casa sem ninguém me atender.
E chegámos finalmente à Rodrigo da Fonseca, rua da minha infância e adolescência, despedimo-nos com agradecimentos e juras de nos reencontrarmos, e toquei à porta na esperança que abrissem e eu fosse preparando caminho para evitar “cheliques”, desmaios, etc, etc.
Tal não aconteceu, e assim fui subindo de elevador até ao quarto andar e, com algum receio, meti a chave à porta e abrindo-a gritei:
Sou eu, o Joaquim, já cheguei da Guiné, não se assustem!
Respondeu-me o silêncio, um insuportável e profundo silêncio!
A casa não tinha aspecto de ter vida naquele momento e então fez-se luz no meu espírito!
Era dia 21 de Dezembro e por isso a família já estava em Monte Real para passar o Natal. Fiquei mais aliviado.
Pousei a mala e fui direito ao telefone, para ligar para casa dos meus pais em Monte Real.
Atendeu um irmão meu:
Está lá. Quem fala?
Respondi:
É o Joaquim!
Resposta pronta:
Ó meu filho da p…, vai pró c…, o meu irmão está na guerra da Guiné e tu a gozares! Vai pró c…
E “tunga”, desligou-me o telefone nas trombas!
Liguei outra vez, e muito rápido disse logo para não desligar, que era eu mesmo e que dava provas disso, etc e tal.
Depois de convencido lá falámos um pouco, porque é eu não tinha avisado e enfim e “assim e andando”. Disse-lhe para me virem buscar a Lisboa e ele disse que já me ligava.
Isto ao que me lembro era assim já lá para as nove horas da noite, ou coisa parecida.
Pouco tempo depois disse-me que me vinham buscar, mas não era já, para eu descansar um pouco, que lá para a meia noite, uma hora estariam em Lisboa.
Não percebi muito bem porquê, porque é que não vinham logo, mas borrifei no assunto.
Mas qual descansar qual quê!
A excitação de estar em Lisboa, mais a fome e sobretudo a sede de uma imperial como deve ser, chamavam por mim.
Lembrei-me então que estava todo vestido de verde e que não ia para a rua fardado, era o que mais faltava!
Fui ao guarda-fatos do meu quarto procurar roupa para vestir e deparei com o dito cujo vazio!
Tinham-me levado a minha roupa toda para Monte Real, julgava eu.
Assim tive de me socorrer das jeans que trazia na mala vinda comigo da Guiné, um pólo azul claro e os respectivos sapatos.
Tinha, julgo eu, cerca de 20$00 no bolso, guardados religiosamente desde a última vinda à Metrópole, nas férias.
Saí de casa e percebi então verdadeiramente que era dia 21 de Dezembro, Inverno em Portugal e que eu estava de manga curta e com o “bronzeado” típico da tropa em África.
Não me preocupei com a coisa, mas vi nalguns rostos que se cruzavam comigo na Avenida da Liberdade, o espanto e a pergunta íntima se eu não estaria doido.
Fui direito ao Gambrinus, na Rua das Portas de Santo Antão, onde os meus amigos e o pessoal dos toiros se costumava juntar ao fim da noite, na certeza que havia de encontrar pessoal conhecido e que alguém havia de ter pena de mim e me havia dar de comer e beber.
Assim que entrei e me dirigi ao balcão, o Domingos, Chefe do Bar e que me aturava desde as minhas primeiras saídas nocturnas em Lisboa, logo percebeu o que se passava e disse-me:
Acabou de chegar da Guiné, não é? E se calhar nem tem um tostão no bolso?
Para além de me servir de imediato uma reluzente, fresquíssima e saborosa cerveja, deitou as mãos ao bolso e entregou-me dois contos de réis, dizendo-me que depois faríamos contas.
Senti-me um pouco em casa e entretanto foram chegando os amigos, foi-se fazendo a festa, bebendo umas cervejas e matando saudades.
Depois lá fomos para um bar qualquer de Lisboa, continuar a noitada, de tal modo que me esqueci que já devia ter os meus irmãos em casa à espera.
Despedi-me, meti-me num táxi e fui para casa onde os meus irmãos já dormiam nos sofás da sala.
Abraços, algumas lágrimas, recriminações por não ter avisado e metemo-nos no carro para, julgava eu, irmos direitos a Monte Real.
Claro que passado um pouco, com trepidar do carro e as últimas emoções vividas, adormeci como um “anjo” e dormi por tempo largo.
Quando acordei e olhei pela janela do carro não percebi se ainda estava a dormir e a sonhar, porque a paisagem que via na luz da aurora nada tinha a ver com Leiria, Monte Real, ou arredores.
Logo de imediato parámos numa bomba de gasolina e os meus irmãos disseram-me que o meu pai e os outros estavam à minha espera no café, ligado às bombas.
Mais abraços, mais lágrimas e a pergunta inevitável:
Mas onde é que raio nós estamos?
Desvendou-se o mistério:
Estávamos no Alto Alentejo a caminho da Castelo de Vide, onde íamos a uma batida aos coelhos!
Fiquei ali sem pensar no que dizer.
Certo é que passado pouco tempo lá estávamos preparados para a caça, (não me lembro se vesti o camuflado, ou a farda verde), e eu ainda nem passadas 24 horas de ter saído da Guiné, com uma arma na mão a olhar para a mata à minha frente.
O meu irmão João dizia-me:
Ó pá, toma cuidado que andam aí uns gajos a bater os coelhos. Não são “turras”, (que me perdoem os camaradas de armas do PAIGC), são batedores. Não dês um tiro em nenhum!
Aviso importante que retive na cabeça, pois a coisa podia dar para o torto.
Bem, durante a manhã acertei sobretudo no chão, nas árvores e em muita coisa que não coelhos, mas para a tarde já matei um ou dois, sei lá, já não me lembro.
Regressámos então a Monte Real, onde fui “apaparicado” pelas senhoras da família, com a minha mãe à frente, claro.
Nem sempre o último filho de nove irmãos tem a possibilidade de ser mimado, porque é coisa já muito vista, por isso foi um momento muito especial do meu regresso.
No outro dia de manhã, (ainda estou para saber se foi real ou sonhado), ainda a dormir ouvi umas explosões e só quando dei com as trombas na porta da cozinha percebi que não havia valas para me meter e que já não estava na Guiné mas sim em Monte Real.
Parece que teria havido uns foguetes nessa manhã, mas não se falou mais no assunto.
Regressado a Lisboa, lá me fardei pela última vez para ir ao Depósito de Adidos, acabar com a minha ligação à tropa.
À entrada, e perante a indiferença do sentinela, (que achei uma falta grave de consideração por um combatente…), dei-lhe uma “pissada” e obriguei-o a fazer um “ombro arma” como devia ser.
Entrado na Repartição que me tinham indicado, dou com um Sargento sentado, mal humorado e que me atendeu como se eu fosse uma “merda” qualquer.
Depois de algumas insistências minhas para ser atendido e uns grunhidos do dito cujo como resposta, veio ao de cima o meu lado irascível e colocando uma mão no balcão, saltei para o outro lado.
Está bom de ver que o homem deu um salto e correu para trás fazendo imensas promessas que eu iria ser despachado num ápice e que pedia muita desculpa, mas não se tinha apercebido, etc, etc.
Lá me entregaram o papelito a dizer que eu passava à disponibilidade e curiosamente não estava lá nenhum General ou politico para me agradecer os três anos dados à Nação, etc, etc, o que eu também não estava à espera, obviamente.
À saída, ainda fardado claro, o sentinela ao ver-me, fez o mais perfeito “ombro arma” da sua breve carreira militar. Ai não!!!
Bem, depois foi a inadaptação à sociedade de Lisboa.
Aquela gente vivia como se não houvesse gente a morrer na guerra, como se nada se passasse e quando eu dizia qualquer coisa acerca disso, olhavam para mim como se eu fosse um qualquer “alien” completamente desfasado da realidade.
Claro que isto não podia dar bom resultado, e as noitadas, os copos sempre em exagero, os problemas e “desaguizados” constantes, não prenunciavam nada de bom para a minha vida futura.
Os meus pais preocupados, bem como o resto da família, arranjaram uma solução que me propuseram.
Um dos meus irmãos mais velhos tinha empresas em Angola e Moçambique, e assim, se eu concordasse iria uns tempos para Angola, adaptar-me a trabalhar, a fazer algo de útil pela vida e depois logo se veria o que se seguiria, pois em Lisboa a coisa ia-se complicar e o reentrar no curso de Medicina era coisa que nem os maiores sonhadores acreditavam que eu fizesse.
Assim, passados pouco mais de dois meses de ter saído da Guiné, no dia 8 de Março de 1974, esta “praça” desembarca no aeroporto de Luanda. (É curioso que o país e a tropa complicaram como o caraças a minha ida para Angola, o que não tinha acontecido quando foi para eu ir para a Guiné. Porque é que seria????)
Aberta a porta do avião, levei com aquele calor e aquela humidade que aproximam o clima de Luanda do da Guiné, e foi quase como um regressar a “casa”.
Daqui para a frente, o clima, a sociedade, os amigos, e até, curiosamente a situação politica, ajudaram-me a encontrar um equilíbrio para poder continuar com a minha vida.
Regressei pouco antes da independência, mas já com outra vontade de viver.
A guerra passou, os tempos duros e feios também e agora dou comigo muitas vezes, como dizia no nosso encontro em Monte Real, a ter saudades da Guiné e dos tempos de camaradagem, em que os homens por força das circunstâncias, mas não só, confiavam uns nos outros e encontraram amizades para toda a vida.
Somos especiais, não tenhamos dúvidas, pois o que passámos determinou em nós um código de conduta, um “linguajar” muitas vezes apenas para nós compreensível, e uma generosidade de entrega que se revela de cada vez que é necessária.
Fazemos e faremos quer queiram quer não, os políticos e outros, parte inegável da história de Portugal.
Apenas me “morde” a consciência, o coração, aqueles que, ou deixando-se levar por promessas ou de livre e expontânea vontade, sendo da Guiné, decidiram combater connosco, servindo a nossa pátria, e acabaram abandonados pela nossa bandeira tendo sido alvo da fúria de alguns dos seus irmãos de nacionalidade.
Estes factos são uma vergonha que há-de perseguir os portugueses e um dia terão de estar inscritos na história como uma das páginas mais tristes e vergonhosas de Portugal.
A ti In Oina Nor e a tantos e todos que como tu protegeram as “nossas costas”, as “costas” de Portugal, a minha homenagem, o meu respeito, as minhas lágrimas sentidas.
Mas estou em paz, pela graça de Deus.
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Monte Real, 28 de Junho de 2008
Joaquim Mexia Alves