domingo, 26 de outubro de 2008

Para além da amizade...

Este texto que hoje escrevo provavelmente poderá dizer pouco a muitos daqueles que visitam este espaço, não só porque a sua idade, (julgo que mais nova do que a minha), os distancia dos factos que provocam esta escrita, como também por ser assunto que normalmente não ocorre ao pensamento das pessoas, por dele estarem afastadas, por não o terem vivido.
Hoje tenho um almoço que reúne cerca de 40 homens que juntos, integrados na mesma Companhia, partiram no dia 21 de Dezembro de 1971, a bordo do navio Niassa, para uma comissão militar na Guiné.
Irei, já sei, rever alguns que já não vejo há 36 anos e que no entanto estão indelevelmente marcados na minha memória, na minha vida.
Enquanto escrevo este texto, sinto uma emoção profunda, um quase sentimento de saudade inexplicável, que, julgo eu, vem daquilo que nos une e está muitas vezes para além da compreensão humana.
Nunca, em momento algum, atrevo-me a dizê-lo, se formam ligações tão profundas, tão enraizadas, que vão para além da amizade como normalmente a concebemos, como nos tempos de provação, de dificuldade, de medo, (sim de medo), por que passam aqueles que juntos fazem ou têm de fazer uma guerra.
Não é logicamente isso que faz da guerra uma coisa boa, porque a guerra é sempre um mal que deve ser evitado a todo o custo.
Mas a verdade é que aqueles que estão juntos numa guerra, longe de casa e dos seus, percebem que a sua ligação vai muito para além da normal camaradagem, da sã amizade, pois implica uma entrega constante da vida de cada um, nas mãos do outro, dos outros, que estão ao nosso lado e vivem connosco as dores, os sofrimentos, que “cheiram” em nós o suor do medo, que também a eles lhes sai dos poros e sabem que nós o “sentimos”.
E é assim que passados muitos anos, às vezes sem nos vermos, o abraço é sincero, forte, acolhedor de parte a parte, como se disséssemos uns aos outros: «Tu é que me percebes. Achega-te a mim que eu é que te entendo!»
Mas tem mais um sentimento ainda, pelo menos nesta guerra que vivemos em África. É que aqueles que combateram dignamente contra nós, são agora também nossos camaradas de armas e não lhes guardamos qualquer rancor, mas pelo contrário, irmanamo-nos nos sentimentos e encontramos até em nós uma vontade de ajudar a construir os países por que lutaram e onde lutámos.
Mas há sempre um “amargo de boca”, para ser benigno na expressão! E este “amargo de boca” vem do facto do nosso país não ter um comportamento digno para com aqueles que por ele combateram, com ou sem razão, obrigados ou não.
Não me refiro obviamente tanto àqueles que graças a Deus estão bem, mas a tantos que continuam a viver no dia a dia os reflexos da guerra, que não dormem como os outros, que não têm estabilidade emocional, que foram desestruturados pela guerra, e a quem ninguém acode a não ser os familiares e amigos.
E há bastantes, sabemo-lo bem, que vivem sem abrigo e o Estado nada faz.
Conheço deles que têm processos há dezenas de anos para obterem um qualquer subsídio que lhes permita fazer face à instabilidade emocional, que não lhes permite ter um emprego estável, e continuam a fazer-se perguntas burocráticas para que nada se resolva.
Outro “amargo de boca”, que me toca especialmente porque também os comandei, foi o abandono a que Portugal votou aqueles que, naturais desses novos países, pertenceram às Forças Armadas Portuguesas. Abandonados à sua sorte, muitos foram fuzilados sem qualquer justificação, e outros vivem ao “Deus dará”.
Também os nossos mortos que por lá continuam, se exige ao nosso país que os traga de volta à terra que os viu partir, e às famílias que querem finalmente encerrar esse doloroso capítulo das suas vidas.
Perdoem-me o desabafo, mas hoje tinha de escrever sobre eles, cidadãos anónimos que deram parte das suas vidas por Portugal, e se sentem hoje e ainda tão desprezados e ostracizados.
Mas eu orgulho-me deles, e orgulho-me com eles, e hoje vamos abraçarmo-nos, vamos rir e cantar, vamos olharmo-nos nos olhos e dizermos uns aos outros:«Tu é que me percebes. Achega-te a mim que eu é que te entendo!»
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Texto que escrevi para colocar num espaço da net, onde colaboro semanalmente.

1 comentário:

David disse...

Amigos
Comento neste espaço o almoço com a gratidão de um camarada mais antigo mas que se sentiu tão bem no vosso meio... Nada acontece por acaso e a ideia que tiveram foi óptima - nesse almoço, esteve a vc convite, representado o "antes" e o "pós" vossa comissão - quer dizer simbolicamente esteve a Companhia anterior, a que eu pertencia e que fizeram o favor de me substituir (obrigatoriamente - e um representante da outra Unidade que vos substituiu) - acho que isso é uma coisa óptima afinal o Xitole estava aqui representado em 4 anos e ate ao fim da guerra da Guiné... Em tempo vai o meu agradecimento por me terem convidado, nãos e esqueça para o ano, e mais ainda vai a minha gratidão para a organização e toda a companhia afinal que tão bem me recebeu, o que eu nada estranhei naturalmente..
Um abraço,
David